1º Capítulo

“E se eu desmoronar, se eu não pudesse mais agüentar, o que você faria?”
(The Kill – 30 Seconds to Mars part. Pitty)

Prólogo

Foi em 2002 que aconteceu a primeira contaminação.
 Ninguém sabe ao certo como foi que aconteceu ou quem foi que iniciou isso tudo, nessa guerra não temos mais tempo para achar culpados. Isso não importa.
 Já estamos todos condenados mesmo.


1. Olhos negros e assassinos
Dias atuais, 2010

Belinda

Se você me perguntar, eu, com toda certeza, vou dizer não.
 Vou dizer que não estava nos meus planos ter um arsenal no porta-malas do camaro do meu pai e também vou dizer que não era essa a vida que eu queria. Eu não desejo isso para ninguém. E eu não estou exagerando.
 Porém me assusta o fato de eu não conseguir pensar em como seria se não fosse assim.
 Não há onde se esconder por muito tempo, eles acham você. Sempre. Minha vida resumi-se à fugas e mais fugas, não temos um lar e minha família já se reduziu a pó faz muito tempo.
 Eu tenho medo. Não do que possa acontecer comigo – já me acostumei a correr e puxar o gatilho quando for necessário. Eu tenho medo do que pode acontecer com meu pai quando ele sai e não me leva com ele.
 Nunca sei se ele irá voltar.
 É difícil ter certeza de qualquer coisa quando você vive num mundo onde ou você foge, ou você morre. Literalmente. Você não sabe quem está vivo ou quem está morto.
 Na verdade, você sabe sim. Geralmente, quem está vivo carrega uma expressão de medo e desconfiança, angústia e pavor, onde quer que esteja. Já quem está morto possui olhos negros com brilho doentio e bocas com sorrisos mordazes e cruéis. Eles sempre estão prontos para acabar com você.
 Por isso nós fugimos. É deles que fugimos. Eu, meu pai e sei lá mais quantos poucos sobreviventes. A única coisa que sei e já estou cansada de ouvir, é que temos que ter esperança. Mas isso eu já perdi faz tempo, a esperança.
 É difícil mantê-la quando tudo o que você tem na vida são rancores e os únicos sentimentos que você conhece e consegue sentir são ódio e medo.
 Quando estou esperando meu pai voltar, seja agachada ao lado de um sofá esburacado numa casa em ruínas que de longe seria nossa, seja encolhida dentro do nosso camaro, sempre penso o pior, apesar de tentar não pensar.
 Eu quero que ele volte vivo. Eu sempre quero que ele consiga. Mas os pensamentos que migram até minha mente são estonteantes, me fazem passar mal.
 E se ele não conseguir? E se um deles o pegou? E se ele virou um deles? E se ele... morreu?
 Perguntas assim me assombram todos os dias e noites em que meu pai fica fora. Não é medo de ficar sem proteção caso ele não consiga. É medo de perdê-lo, de perder quem eu amo e quem me ama, de perder a única pessoa que me restou. Também não é medo de ficar sozinha quando ele sai.
 Eu sei que meu pai nunca deixaria nada de ruim acontecer comigo, mas também sei que se ele realmente acreditasse que conseguiria me proteger, ele não teria me ensinado a lutar e nem como usar uma arma.
 Meu pai também tem medo de não conseguir voltar.
 Toda vez que ele sai à noite, como fizera agora, eu fico em constante estado de alerta. Eu vigio cada possível entrada de qual seja o lugar que paramos naquele dia. Há dois dias que nós paramos numa vila que parecia abandonada e nos instalamos nesse casebre de um quarto e um banheiro e vedamos todas as janelas com madeira.
 Os móveis daqui já estavam todos destruídos, cadeiras sem pés exceto essas duas junto a uma mesa quadrada. Tudo era imundo, mas não tínhamos do que reclamar.
 Mesmo com janelas vedadas, eu não tenho como me deixar relaxar, faz parte de quem eu sou. Nunca confiar, eu aprendi com o tempo. Nunca confiar em nada. Eu me preparo ao menor sinal de que um deles está por perto.
 Já fui atacada por eles. Várias vezes. Não posso dizer que gosto, mas é minha realidade, minha vida, eu tenho que me defender deles, senão eu morro. Eles começaram a me atacar quando eu tinha quinze anos. Eles não querem transformar crianças. Agora não se engane ao achar que dentro da mente deles talvez possa haver um resquício de moralidade.
 Eles não transformam crianças porque elas não têm força suficiente e não conseguem obedecer. Eles não a transformam porque são fracas.
 Mas, apesar do que eu preferia pensar, um deles me queria, um deles me queria viva e não morta. E acredite isso não é menos alarmante.
 É pior.
 Quando eu tinha nove anos, houve uma noite na minha vida que eu nunca serei capaz de esquecer. Foi a noite que ele disse.
 O vampiro me fitou profundamente, olhos negros que brilhavam enquanto os meus, olhos verdes escuro de uma criança ingênua de nove anos, estavam arregalados de medo e eu me encolhia assustada.
 - Você... – o vampiro disse enquanto sorria e mostrava as suas presas sujas do sangue de minha família. Naquela noite, aquele vampiro matou meu irmão, Lucas, e minha mãe. Eu não vi, mas eu vi o sangue nele e ouvi os gritos deles. – Eu quero você comigo – ele lambeu os lábios, tirando o excesso de sangue, enquanto arriscava um olhar para meu pai nocauteado. Ele tinha lutado para evitar aquilo. Mas meu pai era apenas humano. – Mas eu não quero agora. Sou paciente.
 Só consegui correr até meu pai quando o vampiro finalmente foi embora e comecei a chorar em cima dele. Eu esperei até ele acordar porque estava com medo de levantar a cabeça e ver minha mãe ou meu irmão no chão.
 Na época, eu não consegui entender o que o vampiro tinha dito. Não entendi o sentido e nem o significado daquilo. Mas quando eu fiz quinze, há dois anos, e um vampiro pulou em cima de mim dizendo que tinha vindo em nome do seu mestre, ali eu entendi as palavras do passado.
 Ele queria me transformar em um deles.
 Mas eu nunca permitiria que um deles me tivesse. Jamais permitiria que o assassino da minha família me transformasse como seu igual. Eu preferia morrer a isso.
 Era porque eu temia um ataque dos vampiros que eu sentei na cadeira de madeira junto à mesa e esperava, vigiando todos os lugares, meu pai voltar. Eu insistia mentalmente para que ele chegasse logo. Eu não hesitaria em pegar minha magnum, a qual estava a dois centímetros da minha mão, sobre a mesa. Eu nunca hesitei. Eles não eram humanos. Eles eram cruéis e não tinham qualquer outro sentimento além desse. Crueldade.
 Eu cresci assim, ensinada a nunca relaxar, a nunca baixar à guarda, mesmo quando tudo parecesse calmo. Principalmente à noite. Ela era perigosa demais para ser ignorada.
 Meu cabelo loiro escuro roçava meus ombros enquanto insistia em sair de um rabo de cavalo firmemente amarrado. Alguns fios caiam sobre a minha testa, enquanto o restante pendia solto em suaves cachos no meu rabo de cavalo. Meus olhos verdes escuro fitavam tudo ao redor minuciosamente, temendo qualquer movimento.
 Deixe-me dizer uma coisa sobre esse mundo dominado por vampiros e zumbis no qual sobrevivo: não há motivo para vaidade. Por isso nunca usava nada além das minhas tradicionais roupas. Por exemplo, àquela noite eu usava uma calça jeans preta com coturnos pretos, somados à uma blusa regata branca.
 Esse era meu visual de todos os dias, variando um pouco nas camisetas.
 Eu tinha que estar preparada para qualquer coisa. Você saberia se vivesse se escondendo e lutando contra o que eu luto. Afinal, o segundo que você gasta tentando se equilibrar num salto alto pode ser os segundos necessários para salvar a sua vida.
 Um sibilo me tirou das divagações.
 Merda, sibilos nunca eram bons. Era esse o tipo de sinal para o qual eu estava alerta.
 Levantei rapidamente e agarrei a magnum, mirando prontamente para a porta, porém atenta para as janelas, caso eles conseguissem passar pela nossa vedação. Eu ouvi vagamente alguns passos pesados revirando a terra do lado de fora. Não foi surpresa quando um vampiro escancarou a porta.
 Deus, como eles gostavam de ser dramáticos.
 Esse tipo de comportamento só me fazia adquirir fontes para a minha teoria de que todos eles eram animais sem cérebro.
 Sem hesitar e esperar que ele viesse até mim, eu atirei uma vez apenas na cabeça dele. Isso o derrubou instantaneamente.
 Nós não precisávamos usar balas de prata, me nada disso. Vampiros também não tinham super sentidos, nem velocidade inumana e nem super força. Se tivessem, estaríamos todos ferrados.
 Não que já não estivéssemos.
 Acho que o companheiro do vampiro que eu atirei não gostou muito dessa idéia. Não porque ele me disse isso. Mas ele rosnou. Ele rosnou muito alto.
 Filho da mãe.
 - Idiota! Sua garota idiota! – eu tinha entendido quando ele disse da primeira vez, mas tudo bem.
 Ele rosnou ainda mais e me olhou com olhos negros e assassinos. Ele pulou em cima de mim, me fazendo cair de costas e ficar sob ele – e a minha arma voar longe. Porque as armas sempre voam longe quando precisamos delas?
 O vampiro enfurecido tentou morder meu pescoço, mas não sei se o que o atraia mais era minha jugular ou meu pulso jorrando sangue o qual ele próprio havia cortado, mas sei que aquele momento de indecisão do vampiro foi o suficiente para mim.
 Consegui, de forma miraculosa, chutar a perna dele e rolei para o lado antes que ele caísse em cima de mim de novo. Alcancei a magnum e rapidamente fiquei de pé e atirei nele. Eu atirei muitas vezes.
 Atirei no vampiro até a arma fazer o clique insistente que indicava que a munição acabara.
 O silêncio reinava ao meu redor, nada mais de sibilos ou rosnados ou sequer passos pesados.
 Eu vivia no mundo dos mortos. Tudo era ditado por eles agora. Meu pai me disse que nem sempre foi assim, mas eu era pequena demais antes e não me lembrava de muita coisa.
 Isso era tudo o que eu conhecia. Sobreviva, Belinda, atire neles e viva. Era isso o que eu entendia.
 Sobrevivência.
 Sangue havia respingado no meu rosto e na minha roupa, mas a raiva não me deixava notar isso ou me importar que minha regata branca tivesse sido manchada.
 Eu os odiava. Eu odiava todos eles.